sábado, 29 de setembro de 2007

Acidental

OFICINA
(nos vinte anos do acidente de Goiânia)
O liquidificador de hélices novas solidifica o líquido. Liquida a essência natural a lâmina mortal do trator esteira, estirando na impiedade do operador, a morte dos guavirais, o extermínio das capivaras, o silêncio da seriema, a rarefação do ar, a intensificação do aquecimento global. O globo da morte e suas motos amestradas, sincronizadas, dividindo harmonicamente o espesso espaço da vida. A nave rompe a camada de ozônio, zoneia o espaço celeste, celebra a conquista do universo, babeliza dialetos e línguas, reduz planetas inteiros a simples satélites, simplifica constelações, desvenda mistérios sondáveis. O motor adiabático hiperflex, multiuso, gasolina, etanol, biodiesel e bosta de bode, arrosta as curvas da rota e arrasta o mundo com seus HPs. O velho tear tece sem pressa no ritmo dos pés vestes vistosas que logo são andrajos vestindo andarilhos. O jovem PC com tela lcd, hd de mil gigas, memórias infindas, monitor de tv, em standby na fila do beckup. O pickup inservível, servindo de peça de museu, ainda toca o lp e até o disco de 78 rotações. Toca ao passado, passa batido, perde o sentido, ressente o antecedente, precede o futuro, procede o presente, prossegue, tropeça e na pressa, não aprende parar e pira de vez. É a vez do monjolo dançar no ritmo das águas, subir e descer, bater e amolecer, arrefecer a fome, amortecer o choque, compensar o cheque, contentar o chefe, dar o xeque-mate, matar a saudade dos tempos de roça, de vidinha ruça, no tempo e na raça, na reza pra chover, não pagar para ver. O mais pesado que o ar, arquejando autonomia, voando acima do condor, imponente, conduzindo gente, indiferente aos perigos do infinito ínfimo, atravessa o céu no seu vôo mágico, capaz de prever as próprias tragédias. Um anacrônico aparelho de radioterapia, aposentado pelo desuso, mumificando em seu sarcófago sagrado, violado libera o césio 137, a maldição da máquina.

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