sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Manual de Cultura Inútil

POR TODOS OS SANTOS

Os homens foram todos mortos e sepultados, sopitados os seus gemidos, geminados os sentimentos, sentenciados os erros, erriçadas as crenças, crenados os ressaltos, ressaltados os fatos relevantes, revelados os filmes em branco e preto, pretextadas as hipóteses, hipotecadas as solidariedades, solidificados os anseios de paz eterna, externado o fingimento mais banal, embananado na desculpa mais rota, rotacionado na maior de todas as pressas, apreçado no custo menos atraente, atraído pela trama mais esquiva, equivocado com a mais simples refutação, reputado com a celebridade menos adequada, adensado da forma menos espessa, apressado na estrada sem atalho, atulhado na carga sem atilho, atirado na faina mais inútil, utilizado da forma mais arrevesada, arrazoado do jeito menos sensato, sensibilizado sem verter uma lágrima, lacrado sem o sinete secreto, secretado com o mais puro sabor, saboreado com frugal apetite, apetrechado do mais sujo ódio, adiado para o dia anterior, interiorizado por hábitos proibidos, providos de argumentos inconsistentes, consciente da irresponsabilidade cometida, comentado com a análise mais parcial havida, ávido das vinganças mais atrozes, atrusado no meio mais suspeito, suspenso dos prazeres mais elementares, alimentado pelas ilusões mais alusivas, alucinado pelos pesadelos mais cruéis, cruentado pelas torturas mais abomináveis, abonado nas faltas mais comuns, comungado dos sonhos mais impossíveis, possessor de dominações possessas, professa de seitas satânicas, satirizado pelo menos engraçado dos mordazes, amordaçado pela mais repressora das censuras, censitário dos dados mais confusos, cafuzo de cor questionável, questionário de perguntas sem reposta, repositório de respostas sem perguntas. Os vivos continuam insepultos.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Manual de Cultura Inútil

RESGATE REGATEADO

Os homens foram todos resgatados, regateados todos os preços, apreciados todos os ritmos, ritmados todos os passos, passado todos os apuros, apurados todos os fatos, fatorados todos os números, enumerados todos os nomes, nomeados todos os parentes, parênteses em todas as frases, fraseio em todas as palavras, palavrório em todos os discursos, discurrido em qualquer recurso, recurvo em todas as direções, dileção por todos os sabores, cores vivas em todo o cinza, cinzel para todas as pedras, perdas a todos os lucros, lacre para todos os segredos, segregados todos os insurgentes, insurdescência a todas as súplicas, suplício a todas as penas, penada em qualquer assunto, acento em todas as vogais, vogante indefinidamente, indefinível a olho nu, núcego de ambições tardias, tardívago em todos os movimentos, móvito em toda gravidez, grave em todos os tons, tonificados todos os músculos, emasculados todos os machos, machucados todos os brios, brioche a todos os famintos, fomento para todos os projetos, projeção para todos os sucessos, sucessão para todos os eleitos, eleição para todos os cargos, encargos a todos encarregados, carregar as armas disponíveis, nivelar todas as pretensões, preterir as adversidades, advertir todos os desavisados, desavir todos os pactos, impactar todos os impasses, impassibilizar todos os sofrimentos, sofrear todos os sôfregos, sofregar a paciência, pacificar os conflitos, confluir os interesses, inteirar o parcial, parcelar todos haveres, reaver o prejuízo, prejulgar todo suspeito, suspender todos os pleitos, peitar todos desafetos, desinfetar os dejetos, desjungir todas as cangas, encangar todos os grilos, grilar todas as terras e aterrar todos os males que se abomina antes que os trinta e três resgatados decidam voltar definitivamente para a velha mina.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Manual de Cultura Inútil

GUERRA DOS MENINOS

Eu vi um menino chegando com uma metralhadora na mão, no coração uma carga pesada de medo, no enredo uma trama triste de amores proibidos, no vidro o reflexo de uma tirania imprecisa, na camisa as marcas de uma luta sem causa, na pausa um minuto de sono e pesadelo, nos cabelos o mistério da força proibida, na partida o aceno da volta iminente, na frente os riscos da proximidade ao caos, nos maus os sinais da piedade, na bondade o calor do perdão, no porão os lucros e perdas da conta fechada, na fachada o último anúncio da liquidação, no chão o primeiro prenúncio da queda final, no canal o filme em cores de uma vida incolor, no vapor a última gota de água potável, no notável a última esperança de ficha limpa, na grimpa uma luz ao final do túnel, no tonel a água transformada em vinho, no ninho a ave que não se fez de um ovo, no polvo suas afortunadas ventosas, nas rosas seus espinhos protetores, nas cores o retrato da aquarela, na fivela o ícone da pecuária prevalente, no pente a lêndea e o piolho, no molho o milho moído, nos idos o momento de glória, na história uma página virada, na fada um conto de mágica, no magenta um grito de guerra, na serra o mundo a perder de vista, na pista estreita as curvas e retas, na meta frustrada os erros revistos, nas revistas a manchete do cessar fogo, no jogo o resultado favorável, no inefável os segredos do enigmático, no prático a solução mais indicada, na caçada o bicho mais exótico, no pórtico a saída para a fama, na lama o chafurdar da fome, no nome o aval para a felicidade, na cidade a obediência cega ao sinal luminoso, no teimoso a conta de chegar, no cantar o ritmo da dança, na trança os vestígios de uma infância vencida. Eu tive medo porque a arma não era de brinquedo.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Manual de Cultura Inútil

VOTO (IN)ÚTIL


Neste domingo vou votar pela paz na terra, pela guerra contra a mediocridade, a liberdade dos passarinhos, os caminhos com destino à sonoridade, a luminosidade da mina arruinada, a piada antiga e seu riso falso, o cadafalso e sua corda nova, a cova e seu defunto novo, o povo e sua experiência, a consciência e seus cabelos brancos, o banco e a conta corrente, a enchente e seus flagelados, o regalado e as abundâncias, a jactância e seus jacás de arroubos, o roubo e seu desvendamento, o cimento e sua sementeira, a cegueira e sua iluminura, a rasura e sua correção, a correição e a voracidade, a veracidade e suas relações, as eleições e seus bons resultados, os soldados e suas baionetas, a caneta e o mataborrão, a seleção e o novo treinador, o trilador e seu trinado triste, o chiste e sua graça oculta, a catapulta e seus alvos cinza, o cinzel e sua pedra ume, o curtume e seu couro cru, o cruá e sua fibra fímbria, a cimbra e sua sombra recurva, a curva e seus atalhos retos, o feto e a vida de fato, o fator e suas consequências, a demência e sua lucidez, o freguês e sua razão, a ração e o razoável, a razia e a pilhagem, a milhagem e o apagão aéreo, o etéreo e o eterno, o inferno e todas maldições, o maldizente e sua língua preta, o exegeta e sua didática, a pragmática e seu formalismo, o fanatismo e suas utopias aterradoras, o aterro e o nivelamento, o movimento e sua abrupta interrupção, a vibração e seu momento de prazer, o lazer até o limite da vadiagem, a viagem até a margem direita do precipício, o benefício até o último a ter direito, o pleito até o último voto, o voto até o primeiro homem honesto.