segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Manual de Cultura Inútil

ANTES TARDE


Estou certo de que mais dia menos dia os mares vão secar, o luar sofrer um definitivo apagão, o coração dar a última batida, a saída abrir-se pela última vez, o pequenez dar o derradeiro cocoricó, o forrobodó ter mais um quebra pau, o mingau à enésima colherada, a fachada mostrar o letreiro final, o fanal emitir o último sinal, o casal dar a última trepada, a caçada pegar o bicho remanescente, a enchente romper a represa, a empresa baixar as portas, a horta secar o repolho, o piolho tomar a cabeça, a cobiça morrer de inveja, a peleja perder a parada, a camada ceder ao peso, o defeso ceder ao anzol, o anzolo perder todo o brilho, o trilho descarrilar o trem, o xerém não dar pro mingau, a espiral retomar a inflação, a inflamação virar gangrena, a gota-serena abrir o olho, o repolho encobrir o alface, a face esquerda corar a direita, a seita peitar a religião, o ladrão flagrar a polícia, a malícia melar o perdão, a perdição pedir passagem, a viagem perder o retorno, o contorno seguir o atalho, o galho tomar o tronco, o bronco domar o sábio, o lábio lamber a língua, a íngua matar a dor, o estertor afugentar a morte, o forte ceder ao fácil, o fóssil conter o fogo, o jogo não empatar, o placar permanecer apagado, o apegado desgarrar, o lugar ser proibido, o descabido caber, o parecer ser contrário, o fadário ser tão triste, o alpiste ser tão pouco, o louco ser tão lúcido, o lúdico ser tão verdadeiro, o primeiro vir atrás, a paz não dar esperança, a criança não crescer, o querer não acrescer, o aquecer não transpirar, o conspirar não decidir, o conferir não comprovar, o pesar não dar fiel, o fel sem ressentimento, o vento vir sem virus, o suspiro sem paixão, a lesão sem tratamento, o fermento sem o trigo, o inimigo sem as armas, o carma sem regressão, a porção ignorada, a fada madrinha, farinha pouca meu angu primeiro. Antes que seja tarde.

sábado, 11 de setembro de 2010

Manual de cultura inútil

RÉQUIEM

Os sinos dobram pelo corpo que não se deixou dobrar, pelo ar que com a fumaça torna-se irrespirável, o intolerável que com a trapaça não passa na porta, a revolta envolta na clandestinidade, a cidade parada no sinal vermelho, o espelho quebrado na imagem apagada, a parada que passa na rua sem gente, o ausente presente nas bodas da cabra, o caibro quebrado na cumieira, a primeira estação depois do outono, o sono dos justos depois da janta, a santa de casa que obra prodígios, o calipígio que cabe no banco, o barranco que contém a corrente, o inocente que sabe bem o que faz, o satanaz e seus anjos sem asa, a casa assombrada junto ao sobrado, as sobras grudentas da baba da cobra, a cobrança da sogra subindo à cabeça, a cobiça do homem pelo que a vista alcança, a dança desconexa do acasalamento, o casamento entre dois inimigos, o abrigo seguro por um fio de esperança, a criança insegura pela desesperança, a ignorância e seu minuto de sabedoria, a alegria e a hora de sua tristeza, a certeza e as dúvidas que acarreta, a correta atitude as recaídas, as saídas abertas e as portas fechadas, as fachadas enfeixadas em seu gás neon, o som sobrecarregado de seus decibéis, os papéis invertidos de mando e manada, a barricada de barras e barris, o feliz folião com a fala e o fole, o gole gelado na goela do galo, o calo grudado na unha encravada, o cravo crivado na ferradura, o ferrão atrofiado da abelha rainha, a bainha de couro da faca de ponta, a conta quitada no vencimento, o aumento ajustado no dissidio, o suicídio e sua exclusividade, a identidade e suas múltiplas clonagens, a bagagem e os incontáveis extravios, dobram os sinos pelo vazio.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Manual de cultura inútil

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Eu sigo a luz frouxa do quarto-minguante, a crescente onda de insatisfação, os satisfeitos com o caos evidente, a aparente noção da verdade, as mentiras da mídia mediana, o extremo das ideologias exóticas, o normal dos seres comuns, a rareza da fortuna honesta, a corrupção dos costumes mais nobres, o pobre mais perto do deplorável, os aprovados no concurso público, o privado aos exploradores, o explorado de todos os matizes, o incolor em todas as matrizes, a filial e seus poucos momentos felizes, a infelicidade e sua plêiade, o solitário e seu tempo todo de lucidez, a insanidade das cabeças geniais, a idiotice e suas virtudes, as mazelas e suas vicissitudes, o favorável e suas bajulices, o grosseiro e suas pacholices, a lisura e suas crueldades, a benevolência e suas concussões, o inabalável e seus temores, a intrepidez e seus defensores, o indefeso e seus pesadelos, o sono e seus sonhos acordados, o adormecer e o frio da madrugada,o anoitecer e as estrelas cadentes, o ascendente e as tempestades, a calmaria e as previsões de chuva, a seca e as provisões escassas, a abundância e seus desperdícios, o aproveitável e o que lhe falta, a sobra e suas sombras, a claridade e seus tons azuis, o amarelo e seu ouro falso, o legítimo e o seu gosto amargo, o doce e seus excessos, o comedimento e seus descuidos, os cuidados e seus deslizes, a lisura e suas lesões, as cicatrizes e suas sucatas, o novo e sua inocência, a impureza e seus apuros, o alívio e seus delírios, o recato e seus recantos, o universo e seus encantos, o desencanto e seus malogros, o sucesso e seus sucessores, o insubstituível e sua substância, o vazio e sua retumbância. Quem me segue?