sexta-feira, 12 de novembro de 2010

FÁCIL

A vida passa na velocidade da luz, conduz do abrir dos olhos ao apagar das velas em um minuto, minuta toda a história num piscar de olhos, olha tudo à sua volta num estalar de dedos, dedilha todas as cordas numa nota só, soletra o alfabeto inteiro na primeira letra, letra a canção completa numa só estrofe, estroça o superior com um só comando, comanda a comandita com uma rubrica, quantifica toda a tabuada com o número zero, zera todas as contas com um cheque pré, prevê todos os futuros numa bola de gude, gruda a esperança em um pau de sebo, sabe o que não aprendeu numa folha em branco, banca as despesas e não cobra juros, jura amor eterno e depois quebra a jura, abjura a fé e não se arrepende, pende para um lado cai e não levanta, planta molha a planta mas não colhe, tolhe os movimentos mas não pára, encara os sentimentos com a descrença, desaquece o clima com a frieza do gesto, gesta gerações sem nenhum gemido, gemia em partes iguais para os diferentes, defere o requerimento sem assinar embaixo, rebaixa o preço sem quebrar o caixa, encaixa o queixo sem morder a língua, míngua a íngua mas não mata a dor, doura a pílula mas não a prescreve, descreve o fato mas não mostra a foto, fita o feto mas esconde o fito, fituca a ira mas simula o ódio, adia a data sem alterar ordem, ordenha a rês e não dá o queijo, queixa-se do mau e não faz mal, malbarata o caro e deixa barato, baratina a barata sem deixá-la tonta, afronta a frota mas não perde o frete, frita a folha mas conserva a fruta, frustra a expectativa e não justifica, ajusta o injusto e não perdoa a culpa, ocupa o espaço e fica à vontade. Até que o ponteiro grande engula o pequeno.

domingo, 7 de novembro de 2010

QUASE

Eu não consegui evitar o atraso, o prazo de validade, a leveidade da aventura, a ventura de querer, a querela com o mais fraco, o fracasso da tentativa, a tentação do pecado original, a originação da ira divina, o divinhar dos tempos remotos, o remorso dos males refeitos, os rejeitos da última explosão, a exploração dos primeiros rumores, os clamores dos descamisados, o descaminho dos desavisados, o desavir dos aliados, a alienação da lucidez, a cupidez do cupido, o cuspido do tísico, o físico do mais forte, o porte de armas, as almas penadas, a pena capital, o capítulo final, a final prorrogada, as prerrogativas de líder, as lides réprobas, as reprovações injustas, as injunções reprováveis, as provas irrefutáveis, as irrefreáveis cominações, as combinações recônditas, a recondução da perversidade, a pervasividade dos rumores, os humores amargurados, o amargor da despedida, as feridas da agressão, a regressão desferida, a devida progressão, o progresso das medidas, as desmedida coragem, a lavagem cerebral, o célebre celerado, o acelerado cidadão, a cidade fantasma, a asma incurável, a incúria desculpável, o descultivo da cura, a curra evitável, o incansável grito de alerta, a incerta corrente do bem, o trem da alegria, a alergia ao dinheiro, o primeiro que bateu à porta, o aporte indevido, o indivíduo inoportuno, o inopino momento, o memento repleto, o replei do último capítulo, o capitular ao som do mais forte, o fortificante espiritual, o espiral da infração, a inflação controlada, o controle remoto, o remorso aplacado, a placa formatada, a forma untada, a entrada proibida, a bebida saudável, soldável a saudade. Eu consegui.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Manual de Cultura Inútil

POR TODOS OS SANTOS

Os homens foram todos mortos e sepultados, sopitados os seus gemidos, geminados os sentimentos, sentenciados os erros, erriçadas as crenças, crenados os ressaltos, ressaltados os fatos relevantes, revelados os filmes em branco e preto, pretextadas as hipóteses, hipotecadas as solidariedades, solidificados os anseios de paz eterna, externado o fingimento mais banal, embananado na desculpa mais rota, rotacionado na maior de todas as pressas, apreçado no custo menos atraente, atraído pela trama mais esquiva, equivocado com a mais simples refutação, reputado com a celebridade menos adequada, adensado da forma menos espessa, apressado na estrada sem atalho, atulhado na carga sem atilho, atirado na faina mais inútil, utilizado da forma mais arrevesada, arrazoado do jeito menos sensato, sensibilizado sem verter uma lágrima, lacrado sem o sinete secreto, secretado com o mais puro sabor, saboreado com frugal apetite, apetrechado do mais sujo ódio, adiado para o dia anterior, interiorizado por hábitos proibidos, providos de argumentos inconsistentes, consciente da irresponsabilidade cometida, comentado com a análise mais parcial havida, ávido das vinganças mais atrozes, atrusado no meio mais suspeito, suspenso dos prazeres mais elementares, alimentado pelas ilusões mais alusivas, alucinado pelos pesadelos mais cruéis, cruentado pelas torturas mais abomináveis, abonado nas faltas mais comuns, comungado dos sonhos mais impossíveis, possessor de dominações possessas, professa de seitas satânicas, satirizado pelo menos engraçado dos mordazes, amordaçado pela mais repressora das censuras, censitário dos dados mais confusos, cafuzo de cor questionável, questionário de perguntas sem reposta, repositório de respostas sem perguntas. Os vivos continuam insepultos.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Manual de Cultura Inútil

RESGATE REGATEADO

Os homens foram todos resgatados, regateados todos os preços, apreciados todos os ritmos, ritmados todos os passos, passado todos os apuros, apurados todos os fatos, fatorados todos os números, enumerados todos os nomes, nomeados todos os parentes, parênteses em todas as frases, fraseio em todas as palavras, palavrório em todos os discursos, discurrido em qualquer recurso, recurvo em todas as direções, dileção por todos os sabores, cores vivas em todo o cinza, cinzel para todas as pedras, perdas a todos os lucros, lacre para todos os segredos, segregados todos os insurgentes, insurdescência a todas as súplicas, suplício a todas as penas, penada em qualquer assunto, acento em todas as vogais, vogante indefinidamente, indefinível a olho nu, núcego de ambições tardias, tardívago em todos os movimentos, móvito em toda gravidez, grave em todos os tons, tonificados todos os músculos, emasculados todos os machos, machucados todos os brios, brioche a todos os famintos, fomento para todos os projetos, projeção para todos os sucessos, sucessão para todos os eleitos, eleição para todos os cargos, encargos a todos encarregados, carregar as armas disponíveis, nivelar todas as pretensões, preterir as adversidades, advertir todos os desavisados, desavir todos os pactos, impactar todos os impasses, impassibilizar todos os sofrimentos, sofrear todos os sôfregos, sofregar a paciência, pacificar os conflitos, confluir os interesses, inteirar o parcial, parcelar todos haveres, reaver o prejuízo, prejulgar todo suspeito, suspender todos os pleitos, peitar todos desafetos, desinfetar os dejetos, desjungir todas as cangas, encangar todos os grilos, grilar todas as terras e aterrar todos os males que se abomina antes que os trinta e três resgatados decidam voltar definitivamente para a velha mina.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Manual de Cultura Inútil

GUERRA DOS MENINOS

Eu vi um menino chegando com uma metralhadora na mão, no coração uma carga pesada de medo, no enredo uma trama triste de amores proibidos, no vidro o reflexo de uma tirania imprecisa, na camisa as marcas de uma luta sem causa, na pausa um minuto de sono e pesadelo, nos cabelos o mistério da força proibida, na partida o aceno da volta iminente, na frente os riscos da proximidade ao caos, nos maus os sinais da piedade, na bondade o calor do perdão, no porão os lucros e perdas da conta fechada, na fachada o último anúncio da liquidação, no chão o primeiro prenúncio da queda final, no canal o filme em cores de uma vida incolor, no vapor a última gota de água potável, no notável a última esperança de ficha limpa, na grimpa uma luz ao final do túnel, no tonel a água transformada em vinho, no ninho a ave que não se fez de um ovo, no polvo suas afortunadas ventosas, nas rosas seus espinhos protetores, nas cores o retrato da aquarela, na fivela o ícone da pecuária prevalente, no pente a lêndea e o piolho, no molho o milho moído, nos idos o momento de glória, na história uma página virada, na fada um conto de mágica, no magenta um grito de guerra, na serra o mundo a perder de vista, na pista estreita as curvas e retas, na meta frustrada os erros revistos, nas revistas a manchete do cessar fogo, no jogo o resultado favorável, no inefável os segredos do enigmático, no prático a solução mais indicada, na caçada o bicho mais exótico, no pórtico a saída para a fama, na lama o chafurdar da fome, no nome o aval para a felicidade, na cidade a obediência cega ao sinal luminoso, no teimoso a conta de chegar, no cantar o ritmo da dança, na trança os vestígios de uma infância vencida. Eu tive medo porque a arma não era de brinquedo.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Manual de Cultura Inútil

VOTO (IN)ÚTIL


Neste domingo vou votar pela paz na terra, pela guerra contra a mediocridade, a liberdade dos passarinhos, os caminhos com destino à sonoridade, a luminosidade da mina arruinada, a piada antiga e seu riso falso, o cadafalso e sua corda nova, a cova e seu defunto novo, o povo e sua experiência, a consciência e seus cabelos brancos, o banco e a conta corrente, a enchente e seus flagelados, o regalado e as abundâncias, a jactância e seus jacás de arroubos, o roubo e seu desvendamento, o cimento e sua sementeira, a cegueira e sua iluminura, a rasura e sua correção, a correição e a voracidade, a veracidade e suas relações, as eleições e seus bons resultados, os soldados e suas baionetas, a caneta e o mataborrão, a seleção e o novo treinador, o trilador e seu trinado triste, o chiste e sua graça oculta, a catapulta e seus alvos cinza, o cinzel e sua pedra ume, o curtume e seu couro cru, o cruá e sua fibra fímbria, a cimbra e sua sombra recurva, a curva e seus atalhos retos, o feto e a vida de fato, o fator e suas consequências, a demência e sua lucidez, o freguês e sua razão, a ração e o razoável, a razia e a pilhagem, a milhagem e o apagão aéreo, o etéreo e o eterno, o inferno e todas maldições, o maldizente e sua língua preta, o exegeta e sua didática, a pragmática e seu formalismo, o fanatismo e suas utopias aterradoras, o aterro e o nivelamento, o movimento e sua abrupta interrupção, a vibração e seu momento de prazer, o lazer até o limite da vadiagem, a viagem até a margem direita do precipício, o benefício até o último a ter direito, o pleito até o último voto, o voto até o primeiro homem honesto.